top of page
  • Foto do escritorDadá Amadeu

Cantou, dançou - Conto


E o Santo Cristo até a morte trabalhava Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar E ouvia às sete horas o noticiário Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar

-Renato Russo (Faroeste Caboclo)


Os tênis petos, rasgados nas beiradas, gastos e encardidos, deixavam suas marcas na estrada de terra vermelha. Tratava-se de um daqueles dias em que João achava quase impossível alcançar seu barraco, tamanha a dor que sentia nas pernas. O corpo dolorido, o cansaço vagueando os sentidos, a vista com os cantos embaçados. Era como se ainda pudesse sentir o sol esquentando o topo da cabeça raspada, o suor lambendo-lhe a face escura.

A feira estivera congestionada de donas com sacolas bonitas para ele carregar. Entre uma carriola e outra de produtos, pegava esses serviçozinhos para ganhar um trocado. Fazia-o com alegria, cantarolando baixinho os embalos ouvidos no bar, na noite anterior; pensando nas generosas gorjetas que receberia, nas economias que já eram quase suficientes para ele e Val cobrirem a garagem recém-construída. A ideia dava-lhe forças, dia após dia, para suportar os típicos e passageiros flagelos do trabalho.

Ao avistar, ao longe, seu barraco, com os novos muros levantados, pagos, tijolo a tijolo, com seus próprios calos, pensou na careta que a esposa faria ao sentir sua catinga de suor. Ela incentivaria Clarinha a dizer que o papai estava fedido e diria para ele tomar um banho enquanto ela punha a mesa.

Com um sorriso abobalhado no rosto, fitou a janela da casinha enquanto descia a última rua a separá-lo da família. Estranhou não ver a mulher ali, um braço no murinho e outro agarrado à mão diminuta da filha, aguardando-o no portão. Achou ainda mais incomuns as ausências do delicioso aroma do feijão recém-cozido e da barulheira boa que costumava ressoar nos muros sem reboco da morada. A TV estava sempre no volume mais alto do desenho mais irritante. Exceto naquele dia.

Aproximou-se da porta. Os finos dedos negros temeram quando empurrou a porta de madeira apodrecida, encontrando algum conforto no seu rangido familiar. No entanto, atestou um lar muito diferente do usual: Apenas um barraco sem número vazio, apenas ecos no silêncio gritante.

As ameaças de Val finalmente concretizaram-se. Apesar de terem tornado-se mais frequentes na última quinzena, sempre pareceram vazias. João jamais levara tais promessas a sério; apesar de haver sempre grandes festivais de gritaria quando ela tomava consciência de alguma grande venda sua, parecia gostar muito das coisas que a renda extra vinha podendo comprar.

Antes de ele vender as substâncias, – gostava de tratá-las assim, como se fosse alguma espécie de farmacêutico muito importante – Val nunca pudera ir ao salão de beleza, Clarinha só usava roupas doadas das netinhas roliças das donas de sacolas bonitas, e, especialmente, a família nunca fora à sorveteria fora do morro.

De repente, nada disso importava. Com os olhos escuros concentrando toda a tristeza que Deus pode conceder a um homem, João encarou, estático, o minúsculo cômodo. Dois, cinco, dez minutos até sentir que podia respirar livremente de novo. Devia ter percebido os sinais. Val nunca acharia razoável viver ao lado de um traficante. Não poderia comprá-la, inda que se tornasse um dos poderosos.

Não se sentia mais cansado. A dor, melhor que qualquer dose de morfina, pior que qualquer moléstia, anestesiara-lhe todos os nervos, cada centímetro de musculatura relaxara. Anuviara-lhe os pensamentos, fizera-o esquecer da fome, do sono, do bolo de notas pequenas que fazia volume no bolso. Só via coração. Só pensava em coração. Só era coração.

Desnorteado, tomou o familiar caminho de terra batida, em meio aos casebres de Eternit da vizinhança, ainda mais decadentes que o seu. Apenas em parte consciente do rumo que trilhava, buscava arejar os pensamentos, tirar das costas o peso da culpa latente.

Passou pelo bueiro entupido, a padaria do Carlos, o restaurante do seu Osvaldo e fez o sinal da cruz ao proceder pela estátua dA Virgem em frente à igreja. Tudo ainda estava aberto, as luzes amarelas engorduradas acesas, aguardando os trabalhadores que tinham, todos, o mesmo ritmo de vida que o seu.

A noite caía, fria, conferindo ao morro da Babilônia ares tenebrosos. Os moradores, no entanto, faziam-se como vaga-lumes reversos: Atraíam-se pela escuridão, clareados da própria luz brasileira, incandescente. Confiantes, reluzentes, seguros no passo entre a própria gente. Os cantos dos lábios de João voltaram-se levemente para cima.

Encarando a pintura descascada do pequeno estabelecimento, estacou em frente ao bar Vinte de Novembro. Inspirou o ar seco e entrou a passos calmos, sedento pelo álcool, pela euforia, embriaguez e alívio.

Atrás do balcão, Mário servia as doses a rostos familiares. Às sextas-feiras, era comum o vuco-vuco no bar, que fechava apenas aos primeiros raios de sol do sábado. João acenou para o amigo, que assentiu de volta enquanto guardava a Parati na prateleira.

-Quem diria! João Gostoso por aqui?! – Admirou-se o homem. – Foi só começar a ganhar dinheiro que se esqueceu do amigo Mário, aqui, né?

O homem, bigodudo e atarracado, recostou-se no balcão, enxugando as mãos no guardanapo xadrez sempre estendido nos ombros. Riu e esticou um dos braços para dar um tapinha nos ombros do amigo.

-Poxa, Marião, sabe que não é isso. Ando trampando muito, não sobra tempo de vir ao bar. E como eu queria! – Riu-se João.

-Ah, eu não caio nesse migué, não, rapaz! O morro todo já sabe que você entrou para o comércio, Gostoso. Ninguém aqui é cego para não ver a puta reforma que você está fazendo naquele barraco – disse e fez uma pausa para entregar algumas cervejas ao cliente que se aproximava, de torso nu e calção de praia. – Tá ficando a coisa mais linda, cara! Parabéns. As coisas melhoram, eu te disse. Logo, vai estar mandando e desmandando nesse lugar.

João sentara-se em frente ao balcão de azulejos brancos, o banquinho giratório rangia sob o seu peso ínfimo.

-Obrigado, irmão. Mas já tenho minhas dúvidas sobre esse esquema todo. Mal entrei e já quero pular fora. –Apontou para as cervejas, silenciosamente pedindo por uma.

-O quê?! Como assim, rapaz? – Mário arregalou os olhos e entregou ao colega uma latinha quase congelada. – Não é assim, você sai e entra quando quer! Se os caras ouvem você falando um trem desses, não vive para ver o Sol nascer.

-É, estou sabendo.

Durante aquela noite, em silêncio, Mário assistiu a João passar por três estados diferentes: Viu-o amuado, tomando longos goles da bebida e brincando com os lacres metálicos entre os dedos, todo olhos marejados e ombros caídos; levemente alterado, jogando papo fora com outros clientes em um volume que excedia o aceitável e totalmente embriagado, dançando e cantando músicas das décadas passadas reproduzidas no radinho a pilhas do bar. Apesar de não ter conseguido arrancar mais detalhes do colega, sabia que havia algo errado. Nessa vida de ficar atrás do balcão, cansara de reconhecer corações partidos.



Apenas ao ser arrancado de seus sonhos por fortes batidas em sua porta, no domingo mais frio do ano, é que o comerciante conseguiu unir todas as peças do quebra-cabeça. Enquanto o vento uivava lá fora, cortando como navalha cega sua pele exposta, onde quer que batesse, ele encarava uma Valquíria encapuzada do lado de fora do batente.

A jaqueta do moletom não combinava com a calça, nem nenhum deles com as meias estampadas. O cabelo, de um loiro estranho, quase laranja, arrepiava-se ao redor do rosto, despenteado com o vento. A face estava deformada pela dor, os olhos eternamente congelados numa expressão de grito interior. Ela tentava contar o que sabia dos acontecimentos, entre soluços. Queria saber como o marido estava na sexta-feira.

-Você foi o último a falar com ele, Mário. Se tem alguém que pode ajudar, é você! Eu não sei o que fazer agora. Eu quero saber!

O corpo de João Gostoso fora encontrado, poucas horas antes, nas profundezas da lagoa Rodrigo de Freitas. A polícia fizera pouco caso, fingira desentendimento. Na Babilônia, ninguém vive ou morre sem o consentimento dos poderosos.




João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número. Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

- Manuel Bandeira (Poema tirado de uma notícia de jornal)

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page