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  • Foto do escritorDadá Amadeu

A narrativa tendenciosa de Lolita




“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne.”

-Lolita, Vladimir Nabokov.


Lançado em 1955, Lolita é um romance inesperado e surpreendente tanto por seu conteúdo, quanto por seu formato. Pretendendo fazer-se verossímil, o autor inicia a obra com um prefácio escrito por John Ray, um professor universitário de filosofia que, supostamente, teria recebido o presente manuscrito do advogado do protagonista, então morto, pouco antes de seu julgamento por pedofilia e homicídio. Existem, ainda, elementos narrativos corroboradores da ideia de veracidade, como o pedido, expresso no meio da prosa, para que o livro não fosse publicado antes da morte de Lolita. O recurso muito me lembra alguns filmes de terror, os quais pretendem fingirem-se verdadeiros, valendo-se de recursos narrativos como filmagens em primeira pessoa, para gerarem maior impacto no público.


No entanto, há uma forte diferença entre tais filmes e Lolita: Sem essa pressuposição de que os ocorridos narrados são fatos, talvez essas obras cinematográficas perdessem seu charme e não passassem de outros filmes simplistas cheios de jump-scares. A obra de Nabokov, por outro lado, não se apaga ante a perspectiva de uma história ficcional. Todo o descrito, em primeira pessoa, por Humbert Humbert, ao longo das mais de 300 páginas de livro, já é impactante apenas pela forma como é apresentada, pelo choque das cenas. Ao imaginar-se na pele de qualquer uma das personagens do enredo, o leitor, instintivamente, compadece-se, independente de terem existido ou não.


Isto porque o tema abordado é dilacerante por si só: Um protagonista com tendências à pedofilia casa-se com uma mulher, a qual despreza, apenas no intuito de aproximar-se de sua filha de 12 anos, Dolores. Os dois desenvolvem um “romance”, o qual só é possibilitado pela morte da mãe. Romance, entre aspas, porque é evidente, em todas as cenas, o desprezo, ou, no mínimo, indiferença da menina, a qual encarava a relação com o padrasto como uma obrigação.


Para mim, um dos pontos altos da história está em sua narrativa duvidosa, uma vez que tudo é retratado pelo ponto de vista de Humbert Humbert, já na prisão. Valendo-se do discurso indireto livre, o que só deixa o texto mais poético e pessoal, nosso narrador admite, por diversas vezes, que talvez um ou outro detalhe não tenha ocorrido daquela forma exata, ou que aquelas foram aproximadamente as palavras usadas por alguma personagem, ou que não se lembra muito bem do ocorrido; um verdadeiro Bentinho francês. Dessa forma, o acusado é livre para contar apenas sua versão da história, e ela própria não é lá muito favorável para a sua absolvição.


Ademais, tal forma particular de relato permite-nos uma viagem profunda à mente doentia do Sr. Humbert, de forma que chegamos a compreendê-lo em alguns momentos. Esse aspecto também é ajudado pelos diversos formatos textuais por ele usados para se expressar, a exemplo dos poemas presentes no corpo do livro. Esses fragmentos comovem e permitem uma visão ainda mais completa de como Humbert enxerga a si próprio. Ele não se exime de culpa, tem uma opinião muito negativa em relação a si próprio, mas não deixa de ser tudo aquilo que abomina.


Aliás, eis outro ponto: Nosso protagonista é um literato, um homem culto! Disso, advêm diversas referências a importantes obras, o que confere intertextualidade e metáforas ao texto, deixando-o mais interessante e rico àqueles que as compreendem. E mais uma questão remanescente é: Será que é pior um homem tão entendido e consciente do mundo praticar os absurdos que ele pratica? A noção do mal que está infligindo torna-o mais culpado? Com certeza.


Outrossim, toca-me o fato de o livro deixar óbvia uma conclusão inesperada: Humbert Humbert realmente amava Lolita. Mesmo depois de sua companheira tornar-se mulher, abandonando os aspectos ninféticos, os quais o faziam, supostamente, admirá-la, ele não deixa de querer relacionar-se com ela, ao contrário do que ocorrera com todas as outras crianças molestadas por ele até então. Isso fica claro quando, ao cabo da história, com Dolly grávida e madura, ele implora pela fuga apaixonada dos dois. Portanto, apesar de ser uma via de mão única, existia amor no “relacionamento” dos dois. Essa é a única fonte da pena que sinto por Humbert Humbert.


Além disso, é evidente a força existente em Dolores Haze. Destruída por anos de uma “relação” forçada, sob ilimitadas ameaças cheias de violência psicológica, a criança assustada prova-se heróica ao juntar o nada que possuía e fugir, reconstruindo-se numa vida deploravelmente simples, sem nenhum dos luxos aos quais tinha acesso ao lado do padrasto, mas essencialmente livre! A mim, parece estar Lolita para a literatura russa como está Celie (protagonista de A Cor Púpura) para a literatura americana. Ambas destemidas, cínicas e sarcásticas. Lolita não é a luz da vida do Sr. Humbert. Ela é sua própria luz.



“Mas, Dolores Haze, tratemos de esquecer essa terminologia pseudojurídica, que aceita como racional a expressão ‘coabitação libidinosa e lasciva’. Não sou um criminoso sexual, um psicopata que pratica atos indecentes com alguma criança. O estuprador foi Charlie Holmes; eu sou o terapeuta, e essa é uma distinção muitíssimo importante. Sou o teu pai, Lô, teu velho pai.”

– Lolita, Vladimir Nabokov.




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